domingo, 24 de janeiro de 2016

O GRANDE POETA ANÔNIMO DE MINAS

Numa das minhas conversas com Carlos Drummond de Andrade, no seu apartamento carioca, eu frisei:
-Poeta mineiro que admiro muito, e o considero um dos maiores do Brasil, é o Alphonsus de Guimaraens.
Imediatamente, com a maior espontaneidade, Drummond iniciou uma declamação:

Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a cismar...
Viu uma lua no céu,
viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
queria descer ao mar...

E no desvario seu,
na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

Antes de Drummond concluir, eu finalizei:

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...

O poeta de Itabira aplaudiu esta jóia do místico autor do Setenário das dores da Nossa Senhora. Em seguida comentou:
-A poesia de Alphonsus de Guimaraens é harpejo, música delicada, etérea, som evanescente. Nenhum poeta brasileiro, como o “Rouxinol das Alterosas”, falou do amor com tanta suavidade. Vou recitar para você umas estâncias desse mineiro que viveu em Mariana, imerso na pobreza e às vezes nas brumas do álcool.
De olhos semi-cerrados, sem gestos amplos, Drummond deixou sair isto da sua boca de lábios finos:

O amor tem vozes misteriosas
No coração implume...
Como são cheirosas as primeiras rosas,
E os primeiros beijos como têm perfume!

O amor tem prantos de abandono
No coração que morre...
As folhas tombam quando vem o outono
E ninguém as socorre!

O amor tem noites, noites inteiras
De agonias e de letargos...
Que tristeza têm as rosas derradeiras,
E o último beijos como são amargos!

Quando ele terminou de recitar esta poesia do livro Pastoral aos crentes do amor e da morte, eu não me contive:
-Ah, que coisa linda Drummond, que coisa linda! Parece melodia vinda do além, tocada por um anjo de asas trêmulas.
A face comovida do itabirano traia sua emoção. Depois garanti:
-Mas Minas Gerais ainda não fez justiça a um grande poeta.
O autor de Amar se aprende amando me interrogou com os olhos. Afirmei:
-Este grande poeta você conhece. Só que é anônimo, não publica os seus versos em livros, jornais e revistas.
-Quem é?
-O povo mineiro. Ouça estas quadras dele.

Levantei-me, e com voz forte, enfática, passei a declamar:
Como as flores nascem
A minha Líria nasceu,
Como as flores morrem,
A minha Líria morreu...

Como pode o peixe vivo
Viver fora da água fria?
Como poderei viver
Sem a tua companhia?

Maria me deu um cravo,
Sexta-feira da Paixão,
Eu pus o cravo no peito,
Maria no coração...

Passe o tempo que passar,
Viva os anos que viver,
Ande eu por onde andar,
De ti não hei de esquecer.

Sorrindo, Drummond elogiou-me por eu ter decorado estas quadras populares mineiras. E perguntou:
-Você conhece quadras mineiras humorísticas?
-Confesso que não, só memorizei quadras românticas.
Sempre de modo sóbrio, Drummond recitou três quadras alegres de Minas:

Meu pai se chama Caco,
Minha mãe, Caca Maria,
Oh, meu Deus, com tanto caco,
Sou filho da Cacaria!

O seio de siá Janoca,
Eu atesto porque vi,
É que nem leite coalhado,
Não sei como não o comi!

A rua da Venda Nova
É comprida e sem largura,
Toda menina de lá,
Tem perna de saracura.

Conforme Drummond me explicou, há várias espécies da ave saracura e o que a caracteriza, além do canto quase plangente, é o colorido vermelho-rubro das suas pernas feias. Dando prova do seu conhecimento da literatura de Minas Gerais, ele se referiu a três escritores mineiros que citaram a saracura: Bernardo Guimarães, em O seminarista; Afonso Arinos, em Os jagunços, e Guimarães Rosa, em Sagarana.